quarta-feira, 4 de abril de 2012

Arthur & George, questões de cidadania

Arthur & George é um livro de Julian Barnes (Leicester, 1946) de 2005.

O tempo situa-se na passagem do séc XIX para o séc XX, na Inglaterra vitoriana, orgulhosa do seu império colossal, do progresso e riqueza conseguidos com a revolução industrial a par das suas tradições democráticas e da estabilidade das suas instituições modelares que irradiaram do centro imperial para o resto do mundo em "desenvolvimento", harmonizando modos de vida numa perspetiva de encontro universal civilizado.
Neste período em que a modernidade perspetivava para breve a felicidade geral, surgem os acontecimentos conhecidos como "Os ultrages de Great Wyrley", que mostram o reverso do que a ideologia oficial pregava, que se escondia entranhado na "bondade" da aparente marcha para o entendimento universal. George Edalji é inglês de ascendência parsi e nunca esteve na Índia. Filho de um vigário anglicano, parsi, e de mãe escocesa, foi um estudante "normal", mas diferente dos seus colegas. Fervoroso adepto da lei e da racionalidade normativa como modo de tornar o mundo civilizado organizado, claro, prático. Homem solitário, rotineiro e previsível, foi acusado de esventrar gado na aldeia de Great Wyrley.
Surge um dos temas mais importantes: o preconceito enraizado que transforma todos os factos em elementos de prova inequívocos, justificando e afirmando a ideia pré-formada de rejeitar o que é diferente. George é julgado e condenado por crimes que não cometeu porque as vistas curtas do sistema policial e judicial foram decidindo que todos os atos do suspeito obedeciam a um cérebro doentio e perverso que manipulava os elementos de prova de modo a sair impune, numa tentativa puramente maléfica de prejudicar a paz social, atentando contra a propriedade e ridicularizar a justiça. Este tipo de preconceito, contrário à clareza do espírito científico oficial da época é o que promove a xenofobia e a exclusão do que aparenta não se conformar com a normalidade mais básica. E quando se generaliza endemicamente numa nação conduz à repressão social, étnica, política, recusando a liberdade e a afirmação individuais. Conduz ao fascismo e ao nazismo, que surgiram vários anos depois destes acontecimentos.
Outro tema surge com o interesse de Arthur (Conan Doyle) pelo evidente erro judicial. Escritor famoso pelas aventuras de Sherlock Holmes, decide reparar a injustiça flagrante. Como figura pública assume que pode contribuir para ilibar George, entretanto preso. E, como tal, poderá ter um papel na reforma do sistema judicial. Age como um paladino da justiça, num ideal romântico de voluntarismo pela causa, como um cavaleiro medieval que leva a sua luta até às últimas consequências, afrontando clara e diretamente as instituições, confiando na aceitação pública do seu ato cívico. Assume as características do homem novo burguês, idealista, com preocupações sociais, interveniente e positivo.
Neste desenvolvimento os valores individuais das duas personagens são postas em confronto, revelando-se as limitações de cada um. George,  advogado e legalista em extremo não consegue defender-se. O mestre do romance policial não lida convenientemente com a investigação real e concreta e "torce" os procedimentos para chegar aos seus objetivos.
Pelo meio regista-se a crença de Arthur no espiritismo, que aparece como um modo de tornar empírico o que é do domínio da crença (a existência das almas e da vida para além da morte) numa espécie de mergulho do olhar paracientífico (psicológico?) no que tinha pertencido ao obscurantismo desde tempos imemoriais.

Outros temas são tratados de modo articulado com os referidos, estruturados numa escrita em "montagem" paralela, indo do mundo de Arthur para o de George, numa aparência de realismo documental. A objetividade é apresentada como uma indeterminação definida pelos limites do sujeito que vislumbra mais além, mas que avança tacteando pelo caminho traçado por si, em que a realidade se confronta com a ideia que se tem dela. Escrito também em forma de policial, um produto típico do séc XIX, que resulta também de prospeções sobre o manifesto e o oculto na complexidade da sociedade moderna e da sua moral e da dialética entre a sociedade e as suas manifestações ideológicas.

O livro editado pela ASA, anda por aí em saldo. Na Bertrand, custa 10 euritos. Se calhar vale a pena.
                                                                                        
Julgamento de Geoge Edalji


(todas as imagens foram rapinadas da net, com as devidas autorizações feitas num acordo de cavalheiros.)


Luís, cidadão



11 comentários:

the dear Zé disse...

este belogue anda muito literário, ou será literato?

Silvares disse...

Dear Citizen, eu diria que tem dias.

cidadão apreciador disse...

Sim, até parece um blog a sério!

Silvares disse...

Caríssimo Apreciador, quererás dizer "um blogue sério"?

the dear Zé disse...

parece que séria era a mulher do César...

cidadão apreciador disse...

Pois, era isso mesmo caro Silvares, obrigado por me terdes corrigido esse lapso. Agora que estamos no tempo dos lapsos governamentais, gosto sempre de estar à altura dos ministros!

IRIS disse...

belo texto

luís, cidadão disse...

Obrigado IRIS.
A ideia é refletir sobre o que se gosta e se pensa e nos preocupa. Um blogue é uma coisa boa, porque obriga a sistematizar o pensamento e permite a discussão. Porque este espaço aqui também faz parte do blogue. A mensagem original é apenas o ponto de partida para a troca de ideias e argumentos, as mensagens estão lá, não precisam de desaparecer de todo, mesmo quando surgem novas.
A minha ideia sobre estes meios é: não vale a pena falar se não temos nada para dizer, mais vale estar calado; se falamos é porque queremos dizer algo a outras pessoas, por isso devemos ter algum cuidado, sinónimo de respeito, pelo interlocutor (mesmo quando o que se diz é ligeiro).

Silvares disse...

Quem fala assim não é gago! (este cometário pode sugerir que não tinha nada para dizer mas isso é apenas uma impressão que poderá ficar no olhar de um observador desatento).

luís, cidadão disse...

(...)

IRIS disse...

Olá Luís, cidadão,

muito obrigada pelo denso comentário que o meu escasso comentário lhe mereceu. escassez esta talvez devida a alguma timidez e desconhecimento do conteúdo do livro sobre que reflete, mas que se me afigura muito interessante, talvez apaixonante, pelo que parece mexer e remexer nos mais profundos fenómenos da "neurotransmissão" da mente humana, nos seus territórios individual, coletivo e algures no entretanto. assim uma espécie de território de abismo onde acredito poder residir matéria para uma qualquer transformação, grande, profunda, verdadeira (individual, pessoal, incontornavelmente). é escuro e faz medo e o contrário disto tudo também é possível. mas se não se acreditar no que se quer fazer seguir, resta o quê?
e daí o "belo texto". não terá grande interesse esta tentativa explicativa, de qualquer forma, acho que este vosso espaço merece, no mínimo, muita consideração.

cumprimentos, cidadãos, para todos e para cada um