sábado, 10 de março de 2012

A livre iniciativa dos mortos



sonhos húmidos, da série: i/e, caminhos na aldeia


entrevistas na sala de estar (1)


O político determinado e mal compreendido concedeu uma entrevista ao repórter voluntarioso à procura de currículo. Na sala de estar, a conversa arrancou com o "click" de um minúsculo gravador.

"Senhor Primeiro Ministro, em fevereiro houve um aumento de mortes anormal, de acordo com as estatísticas morreram mais 500 pessoas por semana..."
"Ainda bem que coloca essa questão! Quero manifestar as minhas sentidas condolências às famílias dos defuntos e dizer-lhes que lamento profundamente a sua dor."
"Pois, mas as causas desse aumento parecem ser as medidas de austeridade..."
"Os estudos não são conclusivos, nem têm caráter científico. Lamentamos o sucedido e vamos encontrar as verdadeiras causas desse fenómeno anormal. O ministério da saúde tem já uma comissão de jovens técnicos a averiguar o caso."
"Sim, mas constata-se que as pessoas de menos recursos e mais frágeis, nomeadamente os idosos, se vão alimentando com menos qualidade, têm deixado de comprar os medicamento necessários, não conseguem pagar as taxas moderadoras dos hospitais e centros de saúde e não têm como suportar os custos do aquecimento das habitações. Tudo isto terá contribuido para que a sua saúde se..."
"Tenho tentado fazer-lhe perceber que o governo não tem responsabilidade nos óbitos em causa."
"Mas é lógico pensar que a austeridade retirou qualidade de vida e capacidade de resistência à doença, por parte dum número considerável de pessoas!"
"Se vamos por aí, também poderemos especular que uma vida mais simples e draconiana enrija o corpo e desenvolve a capacidade de resistir às adversidades. É um facto que os portugueses têm vivido acima das suas possibilidades, agora terão de se adaptar à nova situação!"
"Não lhe parece uma afirmação pouco sensível às dificuldades dos cidadãos? A defesa duma eutanásia por via económica?"
"Nunca! Por um lado a dívida pública tem de ser paga, é um desígnio nacional, indiscutível! Por outro, o meu partido é a favor da vida, lutámos contra a legalização do aborto e somos contra todas as práticas que atentem contra as mortes não naturais. Por fim, é certo que as pessoas têm de morrer um dia, porque não em fevereiro?"
"Então não encontra uma relação direta entre as mortes em causa e o rápido empobrecimento da população?"
"A sua insistência é reveladora da mentalidade piegas e choramingona que paralisa a aplicação das medidas úteis e eficazes. Sejamos claros! Essa população envelhecida, que riqueza traz ao país? Sabe quanto custa o luxo de manter gente viva nas aldeias? Praticamente não têm vida económica, pagam impostos mínimos, se cultivam é para a subsistência e quase nem limpam o mato. Mas têm eletricidade, televisão, estradas e autoestradas perto, juntas de freguesia e quando estão doentes é a ambulância, o hospital... Só têm alguma atividade em agosto! É um tremendo esforço para o erário público. As aldeias de população envelhecida podiam-se despovoar. Os habitantes passavam a habitar em lares nas cidades, dinamizando a economia. Voltariam todos os anos à terra para as festas dos emigrantes que, agora, seriam organizadas pelas empresas de eventos, com muito mais qualidade e mais modernas. Com isso, ganhariam mais conforto e um mês de férias em ambiente rural, que hoje não têm!"
"Mas isso não seria condenar toda essa gente a uma morte rápida? Sabe-se que o afastamento súbito dos seus locais de referência leva à depressão e ao aumento de falecimentos. As pessoas têm direito a manter-se nos espaços próprios onde sempre têm vivido. Por isso é que os emigrantes regressam!"
"Essa questão é despropositada! Os direitos adquiridos já não existem. As pessoas têm de se adaptar à nova realidade, que é aquela que nós afirmamos que é. Não há alternativa! Se repararmos nas cidades, os idosos vivem sós nas suas casas. Não seria preferível juntarem-se com outros e constituírem uma espécie de nova família? Partilhavam despesas, comida, água e luz, viam televisão juntos, passeavam em grupo e, se fossem inteligentes, agrupavam-se com aqueles que tivessem as mesmas doenças, partilhando medicamentos, consultas médicas e, com boa gestão, até os funerais... Rentabilizavam as pensões, libertavam casas decrépitas e de rendas baixas para a indústria imobiliária, poupavam tempo de trabalho aos familiares. Tornavam-se verdadeiramente úteis, integrando-se ativamente num projeto de modernização nacional. E repare que não temos verdadeiro interesse no desaparecimento desses eleitores, o que se pouparia nas suas pensões mal daria para pagar o salário de meia dúzia de gestores públicos."

Com isto o político determinado e mal compreendido terminou a entrevista, começando a rabiscar o esboço de uma nova lei para o esforço dos defuntos.

Luís, cidadão

5 comentários:

Silvares disse...

Convenhamos que o político desta entrevista é um gajo com visões muito úteis e bastante curiosas. Um tipo assim pode até vir a ser 1º ministro!

the dear Zé disse...

um verdadeiro estadista que é um gajo que verdadeiramente está

Luís, cidadão disse...

Na minha modesta opinião, deveria ser primeiro ministro de toda a União Europeia. Fazia uma limpeza a quem está a mais, sem a destruição causada por uma guerra e economizaria todos os cêntimos.
Oportunidade para os cidadãos exemplares montarem empresas de cremação, seria um negócio em expansão.

Silvares disse...

Essa via económica já foi tentada por um empresário com um bigodinho tipo Cahrlot mas a coisa deu buraco, foi à falência.

Silvares disse...

Tipo Charlot, é bom de ver.